Não é magia, é tecnologia
- Rebobinando
- 13 de nov. de 2019
- 3 min de leitura
Caro leitor, talvez você tenha interpretado nossa abordagem sobre as possibilidades do streaming lá em nossa primeira postagem - A era das locadoras inteligentes - como ingênua e inocente. Pois bem, também achamos, mas quem não fica fascinado com a “onisciência” das plataformas digitais e com essa ferramenta “mágica” que aparenta conhecer nossos gostos mais do que nós mesmos?
Após o encanto inicial, passamos a compreender que, em suas recomendações, a estratégia de plataformas de streaming, especialmente a Netflix, é simplesmente mostrar conteúdos próximos aos que você já costuma assistir, estabelecendo padrões de consumo baseados em critérios de preferência, relevância e frequência. Toda essa “onisciência” é, na verdade, um recurso tecnológico muito falado, porém pouco compreendido: o algoritmo.
Os algoritmos são as ferramentas utilizadas para essa certeira sugestão de conteúdo. Em “A relevância dos algoritmos”, o pesquisador estadunidense Tarleton Gillispie afirma que esses recursos “não são necessariamente softwares: em seu sentido mais amplo, são procedimentos codificados que, com base em cálculos específicos, transformam dados em resultados desejados”. Dessa forma, através dos rastros digitais de seus usuários, isto é, seus padrões de consumo, torna-se possível analisar e antecipar para, assim, promover produtos e atingir públicos de forma eficaz e eficiente.
No caso das plataformas de streaming do ramo musical, elaboram-se sugestões personalizadas baseadas nos artistas e gêneros musicais mais escutados pelos usuários. O Spotify, por exemplo, disponibiliza playlists automáticas com base nos dados gerados pelo consumo dos ouvintes na plataforma. Para além disso, também fornece relatórios sobre particularidades que extrapolam gostos musicais por critérios meramente artísticos, apontando, ainda, a personalidade do usuário por meio da média de batidas de músicas que escuta.
Em relação ao Youtube, a sugestões de vídeos é realizada de maneira semelhante ao Spotify. Os logaritmos operam de forma que as curtidas, inscrições e comentários nos vídeos sejam a base para o direcionamento das recomendações para os internautas. Sendo assim, canais famosos - ostentando uma grande quantidade de seguidores - conseguem obter, regularmente, um número mais expressivo de visualizações, visto que estão sempre classificados como “em alta”. Tal fato corrobora a afirmação de Gillispie de que o algoritmo impulsiona o alcance de conteúdos que já possuem uma elevada visibilidade.
Esse processo é ainda mais perceptível na Netflix. Mesmo quando a plataforma ainda fazia parte do mercado de locadoras tradicionais de filmes, ela já utilizava o recurso dos algoritmos para se aperfeiçoar seus serviços. Em 2003, a plataforma integrou tal estratégia para sugerir filmes aos seus assinantes. O algoritmo responsável por isso foi o Cinematch, que, ao analisar os conteúdos audiovisuais presentes na plataforma, junto a avaliação atribuída a eles e ao histórico de locação dos usuários, era possível criar listas personalizadas de sugestões para cada cliente. Hoje, a mesma estratégia é utilizada, causando a impressão de que a Netflix pode advinhar o que vai te agradar.
Já a disposição dos conteúdos presentes no catálogo da plataforma segue uma lógica muito similar àquela presente nas saudosas (e nas remanescentes) locadoras físicas: as obras são dispostas em categorias, tanto pela relevância como pelo gênero. Esta é a disposição clássica dos DVD’s nas prateleiras, e é utilizada atualmente pelas plataformas de streaming com o incremento das listas personalizadas de sugestão de obras. Para tanto, o design das interfaces de busca são pensadas e projetadas com este intuito. Talerton Gillispie ressalta que “os designers esperam ser capazes de prever as tendências e capacidades psicofisiológicas dos usuários, além de seus hábitos e preferências”.
Assim, a praticidade da curadoria das obras disponíveis no site abriu uma brecha para um novo auto-impulsionamento por parte da Netflix. À procura de um serviço eficaz e rápido, os usuários limitam-se às sugestões em sua página principal e, como consequência, deixam de lado todo um acervo pouco exposto e impulsionado pela plataforma em questão. Dessa forma, convergem-se duas tendências: (1) assinantes ávidos por consumir filmes e séries poupam o tempo de escolha do conteúdo a ser visto; (2) através do algoritmo de busca, a Netflix evidencia, em seu catálogo, suas produções originais.
Vale frisar que os algoritmos não são ferramentas neutras e estão em constante mudança para atender às expectativas de seu programador, e, no caso da Netflix e de outras plataformas de streaming, aos seus interesses mercadológicos e financeiros. A disposição dos conteúdos e as sugestões automáticas não são aleatórias, pelo contrário, atendem não apenas aos padrões de consumo dos usuários, como também aos objetivos de quem (ou do quê) oferta o serviço. Os algoritmos não são neutros, não são simplesmente “automáticos”. Estes operam operam conforme uma lógica pré-estabelecida, baseada em uma base de dados, e estão sujeitas a falhas e equívocos, que escapam do controle de seus próprios desenvolvedores. Em outras palavras, aquela “mágica” da qual falamos inicialmente nada mais é que uma estratégia de venda, uma forma de conquistar os usuários (no caso, nós) a continuarem navegando nas inúmeras sugestões que nos são oferecidas. A ferramenta “mágica” chama-se logaritmo; e não é magia, é tecnologia.
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